Esquizofrenia: descobertas sobre relação com imunidade abrem caminho para novos tratamentos; entenda

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Casos como o da americana que acordou após 20 anos em estado catatônico apontam potencial no uso de imunoterapias para uma parcela dos pacientes

Recentemente, o caso de uma mulher com esquizofrenia severa que acordou de um estado catatônico após 20 anos, nos Estados Unidos, repercutiu e chamou atenção para uma possível causa por trás de uma parte, ainda que pequena, dos casos da doença: um componente autoimune. April Burrell recuperou a consciência aos 47 anos após pesquisadores terem identificado um quadro específico de lúpus na paciente, e terem começado a tratar a condição com imunoterapias.

— Ela estava em estado catatônico permanente, onde seu corpo está rígido e você mal consegue se mover. Ela ouvia vozes sem parar, não sabia quem ela era, onde estava (…) Essencialmente, ela acordou de um coma de 25 anos e foi capaz de nos contar as notas das escolas primárias, o nome dos professores da infância, todas as memórias que pensávamos que tinham desaparecido estavam lá — contou o diretor de psiquiatria de precisão da Universidade de Columbia, nos EUA, Sander Markx, durante uma conferência da Fundação Stavros Niarchos.

Os anticorpos produzidos pela forma do lúpus de April causavam danos apenas ao seu cérebro, o que levou os cientistas a suspeitarem da relação com a psicose. Agora, os pesquisadores mapearam 200 pacientes do Sistema de Saúde Mental do Estado de Nova York com perfis semelhantes e que também poderão se beneficiar do tratamento. É uma perspectiva inédita para uma parcela de casos graves do distúrbio.

Esse papel autoimune, ou seja, em que o próprio sistema imunológico passar a atacar o organismo, não é algo novo, e tem crescido nos estudos que buscam identificar as causas da esquizofrenia, doença que afeta 24 milhões de pessoas e é o terceiro maior motivo de perda de qualidade de vida entre os 15 e os 44 anos, segundo a OMS.
 

Entre os centros de pesquisa que se destacam nesse campo está o Departamento de Psiquiatria da Universidade de Oxford, no Reino Unido, que em 2016 publicou uma das primeiras evidências sobre o tema na revista científica The Lancet Psychiatry. Eles identificaram a presença significativa de determinados anticorpos direcionados a um receptor no cérebro chamado de NDMA no sangue de aproximadamente 9% dos pacientes.

— Descobrimos que aqueles que tiveram um primeiro surto psicótico tinham mais anticorpos contra o receptor, que é um dos mais conhecidos do sistema glutamatérgico, em comparação às pessoas saudáveis. Ou seja, os anticorpos provavelmente impedem o bom funcionamento dele, fortalecendo o nosso conhecimento quanto à atividade reduzida do NDMA nos transtornos psicóticos e em particular na esquizofrenia — explica Linda Scoriels, uma das autoras do trabalho e atualmente pesquisadora do Instituto de Psiquiatria e Neurociências de Paris (IPNP), na França.

O sistema glutamatérgico é responsável pela liberação do glutamato, que se conecta ao NDMA e age como um neurotransmissor excitatório. Ele tem um papel no desenvolvimento neural, na aprendizagem e em outros processos importantes para o cérebro. Porém, os anticorpos anti-NDMA impediriam essa ligação e, consequentemente, levariam a uma desregulação do sistema.

Para avaliar a possibilidade de reverter esses danos e melhorar os sintomas da esquizofrenia, o departamento da Universidade de Oxford conduz testes clínicos com imunoterapias para os pacientes que apresentam níveis dos anticorpos elevados. O recrutamento de voluntários teve início ainda em 2017 e vai até março do ano que vem.

Ainda que abra uma nova porta, Daniel Martins-de-Souza, professor de Bioquímica da Unicamp e coordenador do Laboratório de Neuroproteômica da universidade – que busca desvendar os mecanismos moleculares associados a distúrbios psiquiátricos – reforça que o mecanismo não vai justificar a maioria dos casos de esquizofrenia.

— Sabe-se que existe um papel do sistema imune, mas um desafio na esquizofrenia é que nem todos os pacientes têm o mesmo tipo de disfunção que leva à doença. Podem existir pacientes com um quadro mediado pela disfunção do sistema imune, mas pode existir também que sejam ligados a sistemas metabólicos. Mas estudos como esse de Oxford são bem aceitos porque pode se pensar em tratar no mínimo uma parcela de pacientes — diz.

O que causa a esquizofrenia?
Segundo o professor sênior do Departamento de Psiquiatria da USP e coordenador geral do Programa de Esquizofrenia do Instituto de Psiquiatria da universidade, Hélio Elkis, além da teoria que envolve alterações no sistema glutamatérgico, a hipótese principal hoje é de que a esquizofrenia seja ligada à produção da dopamina, a chamada teoria dopaminérgica.

— Os sintomas psicóticos, como os delírios, alucinações, são explicados por um aumento exagerado da dopamina, sobretudo em áreas do sistema límbico. Enquanto os sintomas negativos, que é a pouca bondade, o pouco afeto, são justificados por uma redução da dopamina em áreas frontais. Esse é o modelo que dizemos ser mais consensual — diz o especialista.

Ele explica que ambos os sistemas interagem entre si, então os dois podem estar envolvidos. No entanto, a grande missão é não apenas confirmar o papel desses mecanismos, como descobrir o que provoca esses desequilíbrios em primeiro lugar. Ele conta que trabalhos com gêmeos, que compartilham o mesmo DNA, mostram que não é um diagnóstico 100% genético.

— Então os outros 50% vêm do ambiente, porque tem fatores desencadeantes. Por exemplo, consumo de maconha sabemos que aumenta esse risco em 5 vezes. Quem passa por complicações obstétricas ao nascer tem 2,5 vezes mais chance. Então fatores ambientais interferem muito, mas essa via autoimune, está sendo muito explorada numa tentativa de encontrar algum elo, e é algo muito interessante — diz Elkis, embora concorde que justificaria apenas uma parte pequena dos casos.

Mais estudos para ampliar o tratamento
Hoje, a esquizofrenia não tem cura, e seus sintomas são controlados por meio de terapia cognitiva e de medicamentos antipsicóticos, que atuam na regulação da dopamina no cérebro. A eficácia, no entanto, é limitada, especialmente para os sintomas chamados de negativos, diz Elkis.

Martins-de-Souza, da Unicamp, defende que, para melhorar os tratamentos de forma significativa, é preciso avançar nas outras causas que estão por trás do distúrbio e desenvolver novos medicamentos – já que os antipsicóticos têm a mesma base desde 1950.

— Aqui no laboratório estudamos as células do cérebro que não são neurônios, chamadas células da glia. Inicialmente imaginava-se que elas serviam apenas para grudar os tecidos, mas de um tempo para cá foi se descobrindo mais e mais do papel delas na função cerebral. Nós defendemos uma hipótese de que os neurônios não conversam direito na esquizofrenia porque essas células não estão funcionando direito — explica o pesquisador, que recebeu um prêmio da Sociedade Internacional de Pesquisa em Esquizofrenia (SIRS) neste ano pelo trabalho.

Além disso, os especialistas concordam que se caminha para que os tratamentos no futuro sejam cada vez mais como o feito na Universidade de Columbia, a chamada medicina de precisão. Isso envolve identificar os mecanismos específicos da doença em cada paciente e desenvolver tratamentos personalizados.

— Ela não apenas na área da esquizofrenia, mas no geral. Os pesquisadores têm se dado conta de que os indivíduos são diferentes. O fato de ter essa heterogeneidade é algo que dificulta muito, seria muito mais simples ter uma causa específica e desenvolver um medicamento para ela. Mas nas doenças psiquiátricas raramente é assim — diz Linda Scoriels.

(Folha de Pernambuco)