Sistemas que ajudam diagnóstico e tratamento vêm sendo aprovados para uso clínico, e uma nova onda de tecnologia eleva demanda por especialistas em hospitais e laboratórios
Com os novos sistemas de inteligência artificial de linguagem impactando áreas tão diversas quanto a computação e a arte, era de se esperar que essa tecnologia encontrasse uso também na saúde. Uma área em particular da medicina, a da pesquisa contra o câncer, foi na verdade pioneira no uso de IA, e os frutos desse trabalho se traduzem em aplicações. Algumas já estão em teste e outras até em uso corrente.
Esse avanço que se constata agora ocorre porque a revolução que a medicina começou, de modo geral, antes, e, em alguns casos, bem antes, da onda de IA generativa que está impulsionando ferramentas como ChatGPT, Gemini, e Llama.
A pesquisa de câncer foi pioneira no campo, em parte, porque a doença sempre envolveu a interpretação de muitas informações sobre o paciente para a tomada de decisões clinicas.
— A inteligência artificial tem aplicação em saúde em qualquer situação que você tenha muitos dados disponíveis, e isso acontece hoje na pesquisa do câncer como um todo — explica o médico e pesquisador Carlos Gil Ferreira, diretor científico do grupo Oncoclínicas.
O ponto de inflexão para uso da inteligência artificial no combate ao câncer ocorreu em 2018, quando o cientista Thomas Fuchs, do Hospital Mount Sinai de Nova York, desenvolveu um algoritmo capaz de identificar com precisão razoável tumores malignos de próstata. Junto com dois parceiros fundou a empresa Paige e foi o primeiro a conseguir aprovação das autoridades sanitárias dos EUA para uso da IA em diagnóstico de câncer por imagem.
— Para tumores bastante iniciais, eles provaram que a inteligência artificial consegue resolver 70% dos casos, aqueles em que não há controvérsia. O especialista humano, o patologista, passa então a ser importante como definidor nos outros 30% dos casos — explica Ferreira, integrante do grupo que ajudou a validar a tecnologia no Brasil.
Desde então, algoritmos de IA para diagnosticar outros tipos de câncer, incluindo de mama e pulmão, começaram a entrar em testes clínicos, e alguns já foram aprovados.
Outra frente até mais antiga de aplicação da IA é na análise do perfil de expressão genética dos cânceres. Em outras palavras, os médicos buscam saber quais são os trechos de DNA que o câncer específico usa para crescer e se espalhar, porque alguns deles servem como marcadores de risco e outros como alvos de droga.
A revolução da IA na genética do câncer chegou já na virada da última década, mas muitas vezes o termo “inteligência artificial” não era usado para descrever a tecnologia. É comum ver o uso das expressões “mineração de dados” e “redes neurais” nos estudos que balizam essa aplicação e no marketing dos produtos. Isso tudo envolve, em última instância, a IA. Parte da resistência no uso do termo se deve ao receio de alguns pacientes de se deixarem avaliar por um robô. Isso, na verdade, não acontece, ainda.
— Existe pouquíssima coisa validada pra ser autônoma. Aqui no no hospital, 100% do que a gente usa de inteligência artificial segue para um médico analisar, e a opinião do médico é que acaba prevalecendo no final — explica Gilberto Szarf, gerente de inovação no Hospital Israelita Albert Einstein.
A garantia de que o emprego da tecnologia é segura é que, para uso em pessoas, ela precisa passar por um teste clínico, da mesma forma que os medicamentos precisam. Já há algum tempo é praxe o paciente assinar um termo de consentimento em que ele pode permitir o uso de suas informações médicas para alimentar algoritmos de IA (os dados são sempre anonimizados).
Oncologista computacional
A frente ética, porém, tem novos desafios em IA, e médicos debatem se pacientes precisam ou não consentir o uso da ferramenta em seus tratamentos individuais, tirando do médico o poder exclusivo sobre essa decisão.
Com essa tecnologia se tornando mais presente nas clínicas, essa praxe pode vir a se tornar mais realidade. O volume de pesquisa em IA para câncer aumentou tanto nos últimos anos que já há menção nos EUA à especialidade médica de “oncologia computacional”, e há periódicos científicos voltados especificamente para o campo.
A revista “AI in Precision Oncology” publicou em abril um volume contendo uma grande revisão dos trabalhos, mostrando o status dessa nova especialidade médica.
“A integração da IA na detecção precoce de câncer representa uma mudança de paradigma em saúde, oferecendo um potencial transformativo em analisar dados complexos de diferentes tipos”, afirma Nikhil Thaker, fundador da empresa de tecnologia médica Bayta Systems e autor estudo. “Essa tecnologia, porém, deve complementar, não substituir a expertise médica.”
Aplicação diversa
Um aspecto da inteligência artificial que foi fruto de dúvida há alguns anos era se essa nova abordagem, a exemplo de outras tecnologias de ponta, não acabaria aumentando ainda mais a desigualdade no acesso a tratamentos por causa dos custos.
Num cenário mais amplo, porém, a IA é capaz de reduzir gastos em hospitais, não aumentá-los. Um estudo de pesquisadores da Universidade Washington de Saint Louis, por exemplo, mostrou no mês passado que o uso de inteligência artificial para complementar as avaliações de mamografias por radiologistas pode melhorar o rastreamento do câncer de mama, reduzindo falsos positivos sem perder casos de câncer.
Ao reduzir a necessidade de acompanhamento e o volume de testes subsequentes, a técnica tem o potencial de desonerar essa frente do sistema de saúde. O estudo foi publicado na Radiology Artificial Intelligence, outra revista médica criada especialmente para acomodar publicação acadêmica sobre IA em medicina.
Na frente genética, também, as pesquisas não param de aparecer. No último encontro da Associação Médica para Pesquisa contra Câncer dos EUA, cientistas da Universidade Johns Hopkins, de Baltimore, exibiram um sistema experimental que captura e analisa fragmentos de DNA e proteínas em amostras de sangue para rastrear sinais de câncer de ovário. A invenção conseguiu diferenciar as pacientes com tumores confirmados daquelas saudáveis e de outras que tinham apenas nódulos benignos no ovário.
Se as ideias estão se mostrando eficazes, um desafio com que pesquisadores estão se deparando agora é o mesmo do uso da IA em outras áreas: entender como o computador pensa. Muitos algoritmos para diagnóstico e prognóstico de câncer usam arquiteturas sofisticadas de programação que resultam às vezes em uma inteligência artificial eficaz, mas obscura.
O uso de algoritmos que sejam insondáveis podem ser um problema para questões éticas da IA. O algoritmo mais moderno que existe para prognóstico da doença baseado em mamografias, chamado Mirai, ainda desafia a compreensão de cientistas. Um grupo de pesquisadores da Universidade Duke, da Carolina do Norte, anunciou em março na revista Radiology que conseguiu uma solução para essa limitação.
“O Mirai é uma caixa preta – uma rede neural muito grande e complexa, semelhante em construção ao ChatGPT – e ninguém sabia como ela tomava suas decisões”, afirmou Jon Donnelly cientista da computação que liderou o trabalho, que resultou numa versão repaginada do sistema.
“Desenvolvemos o AsymMirai, um método de IA interpretável que nos permite prever o câncer de mama a partir de mamografias com 1 a 5 anos de antecedência, e é muito mais simples e fácil de entender do que o Mirai.”
Com os avanços da IA sendo importados dos grandes centros de inovação para o Brasil, médicos brasileiros estão começando a se deparar com essas questões, e a compreensão dos algoritmos é ainda mais essencial, porque nem sempre o desempenho deles se repete quando mudam de cenários. Se uma tecnologia é treinada com dados estatísticos de câncer de uma determinada população, não é garantido que em uma população diferente o algoritmo terá a mesma eficácia.
Para o país conseguir acompanhar os avanços, cientistas afirmam que será preciso treinar mais médicos e mais técnicos.
— A inteligência artificial na oncologia só tem a agregar, porque vai melhorar a precisão do diagnóstico e acelerar a escolha da terapia certa, e como país a gente tem que se preparar para isso — diz Carlos Gil Ferreira. — Hoje às autoridades regulatórias dos EUA, da Europa e até mesmo a Anvisa, aqui no Brasil, já estão levando isso em consideração. Elas sabem que vão ter que ter mais técnicos capazes de analisar o uso da IA como ferramenta, porque os pedidos de aprovação de novos sistemas vão aumentar.
(O Globo)