Isolados e cercados: comunidade quilombola na Bahia convive com pressões para deixar território

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Os moradores da comunidade em um ato durante o Dia Mundial do Meio Ambiente, este ano
Foto: Ascom/CPP-BA/SE
“Aqui é uma luta. Mas mesmo assim eu não quero sair daqui.” É o que diz Dona Aurora, de 83 anos, a moradora mais velha da comunidade quilombola Boca do Rio, em Candeias, na Região Metropolitana de Salvador. Já há tanto tempo, que ela nem se lembra mais quando exatamente, os moradores do Quilombo se veem tendo que reafirmar constantemente o seu desejo de permanecer ali.

A Bahia é o Estado brasileiro com a maior população quilombola. São 397.059 quilombolas, segundo o último Censo Demográfico. Apesar disso, a Bahia figura com o terceiro menor percentual de quilombolas que moram em áreas oficialmente delimitadas. Tal dado pode refletir a baixa delimitação de terras ou o alto número de quilombolas que precisam deixar sua terra.


Para chegar à comunidade Boca do Rio, os acessos são difíceis. A primeira opção é de carro particular. Saindo de Salvador, o trajeto é feito por uma BR, até chegar a uma portaria, onde é preciso se identificar. O acesso é controlado pela Companhia de Docas do Estado da Bahia (Codeba), por estar ali localizado também o Porto de Aratu.

A segunda opção é por barco. Também saindo de Salvador, da região do Subúrbio Ferroviário, é possível acessar a comunidade pela praia. A sensação é de isolamento quase que completo. Durante a pandemia de Covid-19, por exemplo, nenhum morador foi infectado pela doença – ou não chegou a apresentar sintomas.

Apesar da escassez em serviços públicos, os moradores não podem se queixar de que ali não há fartura. A terra quase tudo dá. Cada morador costuma ter suas próprias plantações, que mostram e dividem sem cerimônia. Da praia que margeia o quilombo, são pescados os peixes para serem vendidos ali mesmo, para os grupos que chegam em lanchas e escunas nos fins-de-semana. E do mangue, os moradores catam caranguejos e outros mariscos também para a venda.

“Lugar de sossego, de paz é aqui. Se tem mais outro lugar, eu não sei”, define Dona Aurora.

Desordem

Placa que determina que a praia próxima à comunidade e onde foi instalado o Porto de Aratu é uma área de proteção ambiental

A paz dos moradores é interrompida pela presença das empresas instaladas no Porto de Aratu. A sensação é de que querem expulsá-los dali. “Não tá mais como era, porque chegam devastando tudo”, diz Aurora, mais velha da comunidade.

Ela conta que, antes, os moradores podiam vislumbrar a praia lá mesmo de suas casas. “Isso aqui era uma maravilha. Se a maré estivesse cheia, você ia pelos caminhos. E se a maré estivesse vazia, era uma praia enorme. A areia parecia açúcar, esses açúcares brancos. A gente aqui não se preocupava com nada. Nada, nada, nada. A gente vivia numa vida de paz. De paz mesmo”, relembra.

Com a instalação do porto, as casas foram empurradas morro acima, distanciando da praia. A comunidade denuncia que houve devastação ambiental na área – processo esse que teria sido aumentado pela chegada de uma nova empresa em 2020. Dessa vez, foram os mangues os atingidos.

“A gente mariscava, a gente cortava dendê. Tinha uns pés de fruto. Eles vão chegando e vão fazendo as atualidades [sic] deles. Nem vem tocar, nem conversar, nem coisa nenhuma. Faz do jeito que eles querem. Como quem diz: ‘Ali é cachorro. Quem mora ali é cachorro’.”

Segundo um levantamento da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), é estimado que ao menos 650 quilombos brasileiros sofram impactos de grandes empreendimentos e projetos de infraestrutura. Ou seja, mais de 10% dos quilombos encontram-se sob pressão nos territórios por esses motivos.

Titulação

A comunidade já foi reconhecida como quilombola pela Fundação Palmares
Foto: Ascom/CPP-BA/SE
A comunidade já é certificada pela Fundação Cultural Palmares e os moradores são reconhecidos como quilombolas pelo Estado brasileiro.

Sobre a regularização fundiária, o Incra informou ao Terra que recebeu, no dia 20 de outubro, o Relatório Antropológico da comunidade quilombola Boca do Rio, realizado pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), para dar continuidade ao Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) da comunidade.

Como o RTID ainda não foi publicado, o Incra não pode compartilhar dados do Relatório Antropológico. Este documento tem como objetivo identificar os limites de cada território. O processo para sua elaboração, porém, é extenso e burocrático.

Desde 2019, a Companhia das Docas do Estado da Bahia (Codeba) move um processo contra moradores da comunidade quilombola Boca do Rio. Na petição, a empresa de economia mista, vinculada à Secretaria de Portos da Presidência da República, pede a reintegração de posse da área onde está o quilombo.

O pedido usa como base uma lei de junho de 2013, que trata sobre a exploração pela União de portos e instalações portuárias.

O Terra tentou contato com a Codeba por diferentes e-mails listados em seu site, por mais de uma vez, e não obteve nenhum retorno para comentar a situação da comunidade do Quilombo Boca do Rio. A Secretaria de Portos da Presidência da República também foi procurada, mas não respondeu até a publicação da matéria. 

Os que decidem sair
Neste processo movido pela Codeba, recentemente, quatro quilombolas decidiram aceitar a proposta de indenização. Segundo o advogado Marcos Brandão, da Pastoral dos Pescadores da Bahia, que representa a comunidade, essas pessoas já não moravam mais no quilombo e optaram pelo acordo. Vão receber, cada um, o valor de R$ 400 mil.

Para Dona Aurora, e aqueles que preferem ficar, não há quantia que pague deixar sua terra. Ali, as casas vão passando de um filho para outro, herdeiro para herdeiro. Mesmo que não estejam em bom estado, ainda são a maior riqueza de Dona Aurora.

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“Vocês sabem que daqui pra fora, seja lá onde morar, seja onde for. Quanto é um quarto, quanto mais uma casa? E a sobrevivência da gente? Porque eu não tenho mais marido. Eu ganho uma pensãozinha pouca. Não importa o que vou passar para ficar aqui, seja lá como for. Que Deus dá o frio conforme o cobertor”, acredita a aposentada.

(Terra)