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Muito se tem falado sobre a microbiota que habita o corpo humano, mas poucas pessoas sabem que, depois do intestino, a boca abriga a mais diversa flora do organismo — só de bactérias, são mais de 700 espécies. Da mesma forma que acontece com as vísceras, o desequilíbrio entre os micróbios do “bem” e os do “mal” está associado a diversas doenças, incluindo as cardiovasculares.
A falta de dentes, também chamada de edentulismo, é apontada por estudos como fator de risco das enfermidades que afetam o sistema circulatório — justamente as que mais matam no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). A associação não é causal, mas diversos mecanismos estão envolvidos, como a disbiose bucal.
“Tanto as doenças da boca quanto as cardiovasculares são multifatoriais, então há muitos mecanismos que podem se relacionar, em uma mão dupla”, esclarece a cirurgiã-dentista Elisa Grillo Araújo, pesquisadora das interações entre periodontite — uma infecção bacteriana na boca — e outras doenças sistêmicas. Uma via direta, diz, é quando há um desequilíbrio da flora oral, e os microrganismos maléficos se proliferam e migram para a corrente sanguínea. “As bactérias podem chegar aos vasos, o que provoca uma inflamação associada ao processo de aterosclerose.”
Também há ações indiretas, como a produção de citocinas pró-inflamatórias na presença da periodontite, doença bucal que é a principal responsável pela perda de dentes. “As citocinas contribuem para a inflamação sistêmica”, diz Elisa Grillo, especialista em periodontia, mestre e doutoranda da Universidade de Brasília (UnB).
Barreira
Além disso, a própria ausência dentária é uma das hipóteses de pesquisadores. “É possível que os dentes e a estrutura periodontal tenham um mecanismo de proteção na saúde oral e sistêmica, pois a falta de dente permite acesso mais fácil dos micróbios através do tecido danificado. É possível que a dentição funcione como uma barreira anatômica”, explica Anita Aminoshariae, professora da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade da Reserva Case Western (CWRU), nos Estados Unidos.
Aminoshariae é autora de um artigo publicado há dois meses no Journal of Endodontics que encontrou evidências significativas entre o edentulismo e o aumento do risco de óbito cardiovascular. A pesquisa faz uma revisão de 12 estudos que investigaram a associação e constatou que pessoas com menos de 10 dentes têm uma probabilidade 66% maior de morrer de doenças como infarto e acidente vascular cerebral. “No momento, a plausibilidade biológica que apoia o conceito de dentes perdidos e mortalidade por doença cardiovascular é conjectural e multifatorial”, diz.
Hipertensão
Os processos infecciosos e inflamatórios da boca podem, por exemplo, desencadear fatores de risco bem estabelecidos para as doenças cardiovasculares, como a hipertensão arterial. Doutora em Ciências pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto e professora do Centro Universitário Barão de Mauá, Aline Barbosa Ribeiro é autora correspondente de um artigo de revisão, publicado na revista Interciência, que constatou essa relação (leia entrevista). Além disso, a pesquisadora participou de um estudo em colaboração com a Universidade de Glasgow, na Escócia, e a Universidade de São Paulo (USP), que evidencia ainda mais a associação: o trabalho mostrou que o tratamento da doença periodontal reduziu os níveis de pressão arterial.
A falta de dentes também prejudica a mastigação, o que pode influenciar outros fatores de risco cardiovascular, como a obesidade. Um estudo brasileiro mais antigo, de 2009, descobriu que a prevalência da doença crônica, caracterizada pelo excesso de gordura corporal, foi 50% maior em adultos com menos de 10 dentes em pelo menos uma arcada.
No artigo, publicado na Revista de Saúde Pública, os autores, da Universidade Federal de Santa Catarina, observaram a necessidade de aprofundar os estudos sobre essa associação. Porém, escreveram: “É bem conhecido que a perda de dentes leva ao consumo de alimentos fáceis de mastigar e geralmente ricos em densidade calórica”. Os resultados brasileiros vão ao encontro da pesquisa sobre o tema com maior número de participantes já realizada, divulgada há dois anos no British Medical Journal. O trabalho, feito com mais de 200 mil adultos, constatou que, quanto maior o índice de massa corporal, uma das métricas da obesidade, menor o número de dentes na boca.
Para Anita Aminoshariae, professora da Faculdade de Medicina Dentária da CWRU, ainda que os mecanismos que relacionam a perda de dentes às doenças cardiovasculares não estejam totalmente elucidados, as informações disponíveis são suficientes para incluir os cuidados com a saúde bucal entre os meios de prevenção dessas enfermidades. “Os tratamentos endodônticos podem reduzir a carga biológica, a carga inflamatória, a produção de células imunológicas, citocinas e outras substâncias que aumentariam o risco geral de aterosclerose e mortalidade por doenças cardiovasculares.”
A pesquisadora também defende uma integração maior entre o atendimento odontológico e os serviços gerais de assistência médica. “Por exemplo, exames odontológicos de rotina podem ser incluídos em exames de saúde regulares, especialmente para populações em risco. Além disso, os profissionais de saúde podem ser treinados para reconhecer os sinais de saúde bucal precária”, acredita.
No Brasil, a lei que institui a Política Nacional de Saúde Bucal no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) foi sancionada no ano passado. O artigo 3º estabelece que “as ações e os serviços de saúde bucal devem integrar as demais políticas públicas de saúde (…) com vistas à concretização de ações integrais que viabilizem intervenções sobre fatores de risco comum”. “Para o sucesso das políticas públicas de saúde, é extremamente importante pensarmos que existem fatores de risco comuns tanto para o comprometimento dentário quanto para a mortalidade em geral”, considera Fabíola Bof de Andrade, pesquisadora de saúde pública na Fundação Oswaldo Cruz, em Minas Gerais (Fiocruz Minas).
ENTREVISTA // ALINE RIBEIRO, PESQUISADORA E PROFESSORA DO CENTRO UNIVERSITÁRIO BARÃO DE MAUÁ
No caso da hipertensão arterial, qual o mecanismo sugerido na associação com a perda de dentes?
A perda dentária resulta na disfunção mastigatória, o que, por sua vez, dificulta a mastigação de alimentos duros e, consequentemente, leva à deterioração dos hábitos alimentares. O declínio da função mastigatória traz ingestão insuficiente de vegetais e frutas e aumento da ingestão de alimentos gordurosos. Esses hábitos alimentares indesejáveis estão intimamente relacionados ao desenvolvimento de hipertensão arterial.
Quais as implicações clínicas dessa associação
Estima-se que a doença periodontal afete mais de 50% da população mundial, e sua forma grave é considerada a sexta doença mais prevalente da humanidade, culminando em um número alarmante de pacientes desdentados. Estudos pré-clínicos e clínicos publicados por nosso grupo, que inclui o Centro Universitário Barão de Mauá e a Universidade de São Paulo, sugerem alterações sistêmicas relevantes induzidas pela resposta imune em ratos com periodontite e em pacientes desdentados usuários de prótese total. Muitos pacientes hipertensos são resistentes à terapia anti-hipertensiva existente, sugerindo um papel relevante de alterações inflamatórias crônicas nesse processo.
Considerando que a perda de dentes é um longo processo, como essas pesquisas podem ajudar nas políticas públicas de prevenção?
A compreensão dos possíveis mecanismos envolvidos na perda dental e sua associação com o aumento da pressão arterial é de suma relevância para alertar a população mundial sobre o impacto da saúde oral em alterações sistêmicas. Dessa forma, ações preventivas e curativas no campo da saúde bucal podem impactar de forma positiva no controle de doenças cardiovasculares, em especial, a hipertensão arterial.
(Correios Braziliense)