Agenor Ribeiro, hoje com 70 anos, tinha 12 quando gravou canção que, assim como romance de Jorge Amado, também ‘bomba’ na Rússia
Tiktokers dançando ‘Capitão de Areia’, em 2022, e Agenor Ribeiro, que cantou a canção quando tinha 12 anos, na década de 60 (Foto: Reprodução) |
Nem todo mundo entendeu quando uma música cantada em espanhol, por uma brasileira, foi bater no topo das paradas mundiais, dia desses. Anitta e seu hit ‘Envolver’, por terem alcançado feito inédito, causaram estranhamento. Mas e se eu te contar que um professor da escola em que a própria Anitta estudou, no ensino médio, atingiu sucesso internacional três anos antes, com uma música feita há mais de 50 anos, o que você acharia? Mais estranho ainda, não é verdade?
Incluo agora mais elementos para tornar a situação ainda mais insólita: a antiga canção, intitulada ‘Capitão de Areia’, e portanto inspirada no livro de Jorge Amado sobre trombadinhas de Salvador, virou trilha de dancinha no TikTok e meme no Instagram, tudo isso depois de fazer sucesso na Rússia. E diferente do que muita gente pensa, não é uma voz feminina por trás dela, mas a de um guri de 12 anos chamado Agenor Ribeiro. Naturalmente, o menino cresceu, apareceu, virou músico profissional, professor (provavelmente da própria Anitta, mas ele não lembra direito), e hoje conta 70 aninhos de pura surpresa.
“Uma música fazer sucesso 58 anos depois que foi lançada, fora, e depois no Brasil… Isso aí, eu não sei explicar. Para mim, é uma coisa que foge à minha compreensão”, afirma o maestro e professor aposentado Agenor Ribeiro, responsável por dar voz à composição de Oswaldo Matheus e Zé do Violão, dupla que não viveu o suficiente para ver a música virar hit. Ouça abaixo a versão original e no final a letra na íntegra.
Os fãs da canção – BRs ou não – também não sabem explicar o que está acontecendo. “Não sei por qual motivo, mas virou meme, e por isso que eu vim ouvir”, comenta a internauta Lindalva Azevedo ao justificar sua ida ao YouTube. “Não sei por que está em todo canto. Virou trilha sonora de tudo”, atesta Laura Gomes, na mesma plataforma em que o russo Nikita Rudnev delimita o nível do seu encantamento: “Já ouvi essa obra prima 50 vezes”.
Dia da marmota
A canção iniciou sua turnê internacional através de uma versão do Afterclapp, projeto do DJ brasileiro Rodrigo Vellutini. Há quatro anos, ele postou um remix de ‘Capitão de Areia’ em plataformas como o Soundcloud (onde conta mais de 2 milhões de plays).
Em fevereiro de 2019, o gamer russo Marmok, com 17 milhões de inscritos no YouTube, colocou essa versão como trilha de um corte de vídeo em que joga Counter Strike (CS).
A gravação, hoje com 13,8 milhões de views, fez ‘Capitão de Areia’ alcançar o topo das paradas em Moscou e adjacências. Animado, Vellutini tentou forçar a amizade com o streamer. “Marmok, poderia me ajudar a colocar minha música Capitão de Areia no pacote do CS? Você a tornou famosa, [e colocou] no primeiro lugar”, arriscou o perfil do Afterclapp no Twitter, em fevereiro de 2020. Ignorado com sucesso.
Mas o sucesso do vídeo, intitulado “Eu vejo o futuro”, estava consolidado. “Depois dessa canção, também vejo o futuro: uma em cada duas pessoas escuta”, dimensionou um internauta da Rússia, onde o vídeo postado por Marmok (Marmota, em português) virou trilha para trailer de filme, luta de MMA e até imagens de guerra – e, claro, invadiu ‘a las boates’.
A coincidência histórica da coisa – que dá cores de dia da marmota, no qual as coisas se repetem – é que ‘Capitães da Areia’ é um dos livros brasileiros mais famosos na Rússia. Além disso, uma adaptação americana para o cinema, gravada em Salvador, é um dos filmes preferidos de muitos russos – entre eles Vladimir Putin, que já reconheceu a influência da história dos pivetes soteropolitanos em sua vida. (‘Ai, minha vuaida!’)
Versões
No Brasil, outra versão da música, igualmente usando somente o trecho “garoto abandonado na Bahia, capitão de areia”, começou a viralizar no TikTok há algumas semanas. A remixagem, dessa vez com batida de funk carioca, é do grupo Furacão Hit, que até essa sexta-feira tinha sido postada por mais de 40 mil contas na plataforma.
E o que não falta é versão, adaptação e até uma espécie de adulteração, como a lançada por Xand Avião: “Abandonado, na putaria. A minha ex me largou com as malvadinhas”. Ouça abaixo.
Pai de Cazuza
Nascido no Rio capital do Brasil, em 1952, Agenor Ribeiro cresceu na cidadezinha de Três Rios, na divisa com Minas. Aos 9 anos, virou o cantor principal do conjunto de baile Klaf, quando o anterior foi para uma grande produtora da capital.
“Carlos Alberto, depois conhecido como O Rei dos Boleros, era da cidade e foi contratado pela CBS para gravar na capital. Quando ele saiu do conjunto [Klaf], eu fiquei no lugar. Cantei por dois anos e meio, e depois que o Carlos Alberto fez sucesso no Brasil inteiro, me levou para a Philips para gravar esse compacto simples”, diz sobre o disco que tinha ‘Capitão de Areia’ de um lado e ‘Natal de um Menino Pobre’, cantada por ele e Iza Maria, do outro.
Compacto de ‘Capitão de Areia’ tinha do outro lado a canção ‘Natal de um Menino Pobre’ (Foto: Acervo Agenor Ribeiro) |
“A intenção era gravar uma música para o Natal”, comenta o maestro, ao explicar que a música ‘trabalhada’ pela gravadora foi, justamente, a outra. ‘Capitão de Areia’ ficou em segundo plano, mas o sucesso veio aí, com um tantinho de demora.
Quem estava à frente da gravação foi o empresário e produtor musical João Araújo, pai de Cazuza, e então diretor da Philips, falecido em 2013. “Ele quem dirigiu a minha contratação e a minha gravação, que ocorreu no dia 8 de julho de 1964. Me lembro muito bem de João Araújo conversando comigo, e o produtor artístico, que era o João Melo, baiano por sinal. E João Araújo citou que tinha um filho chamado Agenor. Mencionou isso porque achava que era um nome raro”, cita. Cazuza, que no RG era Agenor de Miranda Araújo Neto, também era criança na época.
O cantor Carlos Alberto, Rei dos Boleros, que levou Agenor Ribeiro para a CBS (Foto: Acervo Agenor Ribeiro)Agenor Ribeiro no conjunto de baile Klaf, em Três Rios (RJ), início dos anos 1960 (Foto: Acervo Agenor Ribeiro)Agenor Ribeiro no programa de Paulo Gracindo (Foto: Acervo Agenor Ribeiro)Agenor Ribeiro no programa de César de Alencar (Foto: Acervo Agenor Ribeiro)Agenor Ribeiro com a cantora Emilinha Borba (Foto: Acervo Agenor Ribeiro)Participação no programa de Flávio Cavalcanti (Foto: Acervo Agenor Ribeiro)Participação especial de ‘Agenor Marcelo’ numa das faixas do disco ‘Muito’, de Caetano Veloso (Foto: Acervo Agenor Ribeiro)O cantor Carlos Alberto, Rei dos Boleros, que levou Agenor Ribeiro para a CBS (Foto: Acervo Agenor Ribeiro)Agenor Ribeiro no conjunto de baile Klaf, em Três Rios (RJ), início dos anos 1960 (Foto: Acervo Agenor Ribeiro)
Cantor da Jovem Guarda
A carreira musical começava bem, e o garoto prodígio foi avançando. Participou de programas de TV e de rádio famosos, como os de César Alencar, Paulo Gracindo e Flávio Cavalcanti, por exemplo. “Eu cheguei a fazer shows com Elza Soares e muitos outros cantores, mas, enfim, depois o tempo passou, o contrato acabou, e aí eu segui outros caminhos”, relembra Ribeiro.
Dos 14 aos 17 anos, voltou a tocar em conjuntos de baile. Aos 18, foi contratado pela CBS. “Gravei um outro compacto na CBS, e ali comecei a fazer show com um grupo de Jovem Guarda”, relembra Agenor, que por um período adotou o nome de Marcello.
Recorte da Revista Amiga, com Agenor ‘cotado’ para ser o novo rei (Foto: Acervo Agenor Ribeiro) |
Nessa época, chegou a ficar na ‘divisão de base’ para substituir Roberto Carlos como estrela da companhia. Numa edição da Revista Amiga, de 1970, aparece na foto de uma reportagem que anunciava: “A CBS, prevendo o afastamento do rei para daqui a alguns anos, procura: o novo Roberto Carlos”.
Sem coroa, deixou a produtora em 72, e foi para o Exército, onde fez parte da banda de música. Depois entrou para o coro da Orquestra Sinfônica Nacional; cantou como convidado no disco ‘Muito’, de Caetano Veloso, lançado em 1978, e fez faculdade de Música para, enfim, virar professor de Teoria Musical, tanto na UFRJ quanto na Escola Municipal Itália.
Maestro Agenor Ribeiro comanda grupo musical e coral da Escola Municipal Itália, onde Anitta estudou (Foto: Acervo Agenor Ribeiro) |
“Era a escola que Anitta estudou, embora não tivesse muito contato com ela. Pra dizer a verdade, nem sei se ela cantou no coral, porque ela era muito diferente”, recorda.
Highlander
Aposentado, hoje vive em Vitória (ES), onde tem um estúdio em casa e continua compondo. Casado há quase 50 anos, tem três filhos, “todos bem encaminhados”, e agora goza do sucesso de ‘Capitão de Areia’ – embora não ganhe um centavo por isso, já que não detém os direitos.
Além de comemorar o sucesso, celebra a própria vida, por ter driblado a morte duas vezes nos últimos quatro anos. Em 2018, sofreu um infarto que, por pouco, não foi fulminante; em 2020, infectado com o novo coronavírus, ficou 9 dias intubado dos 15 que passou na UTI com covid-19. Hoje acredita que (sobre)viveu para ver esse sucesso tardio acontecer. “Disseram que meu nome não era só Agenor, mas Agenor Highlander”, brinca o maestro a quem nada de mal acontece, pois é protegido da Mamãe Sereia.
O maestro Agenor Ribeiro atualmente (Foto: Acervo pessoal) |
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Confira a letra completa de ‘Capitão de Areia’:
Garoto abandonado na Bahia é Capitão de Areia, é Capitão de Areia
Garoto abandonado na Bahia é Capitão de Areia, é Capitão de Areia
Ganha o pão de cada dia
Carregando o tabuleiro
De Água de Meninos para o Largo do Terreiro
Para no fim do dia ter algum dinheiro
Para no fim do dia ter algum dinheiro
Garoto abandonado na Bahia é Capitão de Areia, é Capitão de Areia
Garoto abandonado na Bahia é Capitão de Areia, é Capitão de Areia
À noitinha já cansado
Coitadinho ele adormece
Distraído sobre a areia nada de mau lhe acontece
Ele é protegido da Mamãe Sereia
Ele é protegido da Mamãe Sereia
Ele é protegido da Mamãe Sereia
Ele é protegido da Mamãe Sereia
À noitinha já cansado
Coitadinho ele adormece
Distraído sobre a areia nada de mau lhe acontece
Ele é protegido da Mamãe Sereia
Ele é protegido da Mamãe Sereia.
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(Fonte: Correio24H)