Jornalista foi aluno da professora, morta nesta terça-feira aos 106 anos, a quem chamava de ‘divina Cleo’,
A professora Cleonice Berardinelli com o amigo e ex-aluno Zuenir Ventura, em evento pelos 80 anos do jornalista Marcos Ramos
Cleonice Berardinelli morreu nesta terça-feira, 31 de janeiro, aos 106 anos. Uma das maiores especialistas em literatura portuguesa e na obra de Fernando Pessoa, ela foi homenageada, um ano antes de seu centenário pelo jornalista Zuenir Ventura, seu amigo, ex-aluno e companheiro na Academia Brasileira de Letras.
Leia a seguir a crônica “À mestra com carinho”, escrita por Zuenir Ventura e publicada pelo GLOBO em 17 de outubro de 2015.
À mestra com carinho
Cleonice Berardinelli era conhecida na minha turma do curso de Letras Neolatinas, da antiga Faculdade Nacional de Filosofia, como ‘a divina Cleo’.
Ainda bem que não só de malfeitos e coisas ruins vive a atualidade. Por exemplo, estamos em pleno festival do saber e da inteligência. As Letras comemoram o centenário da professora Cleonice Berardinelli, que acontece no ano que vem, mas cujas homenagens são tantas que já começaram.
Esta semana, foi a vez de a Academia Brasileira de Letras sediar o seminário “Há 100 anos Orpheu canta para Cleonice”, organizado pela cátedra Jorge de Sena, da UFRJ, que teve as sessões transmitidas pela internet e acompanhadas por ela de casa. Doutora em Letras e livre-docente em literatura portuguesa, autora de edições críticas dos “Sonetos” de Camões, de dramaturgos do século XVI, ela é consagrada nos meios acadêmicos daqui e de Portugal por seus trabalhos, em especial os dedicados a Fernando Pessoa, sobre quem escreveu uma tese pioneira em 1958.
Venerada por seus discípulos, era conhecida na minha turma do curso de Letras Neolatinas, da antiga Faculdade Nacional de Filosofia, como “a divina Cleo”, uma expressão com a qual concordavam seus colegas de outras cátedras, como Manuel Bandeira, Alceu Amoroso Lima, Thiers Martins Moreira, Celso Cunha, José Carlos Lisboa, Hélcio Martins.
Ela era a nossa musa, paixão platônica e inconfessável, aliás, até hoje. A voz cristalina e segura de quem na juventude interpretara no palco peças do quinhentista Gil Vicente, seu charme e a capacidade de seduzir a plateia eram a demonstração de como a inteligência podia ser alegre, e a erudição, agradável.
Graças à bela e querida mestra, descobri Pessoa e passei a entender “Os Lusíadas” — eu e centenas de discípulos de várias gerações. Só na ABL, ela tem seis ex-alunos, dos quais dois, Domício Proença Filho e Antonio Carlos Secchin, ambos professores e poetas, apresentaram na última quarta-feira pequenos ensaios sobre a obra da homenageada.
Domicio lembrou que, depois de formado, os vários momentos e faculdades em que conviveram juntos solidificaram a admiração e o carinho profundos pela mestra, ou melhor, pela “Mestríssima”, como a chama. Secchin, por sua vez, declarou-se “perpétuo aluno” e na dedicatória de seu livro “50 poemas escolhidos pelo autor”, escreveu : “Haverá, talvez, poesia/ em algo que aqui se disse?/ Melhor indagar à mestra/ em verso e prosa : Cleonice”.
Cleo, a “atriz”, pode ser vista no documentário “O vento lá fora”, em que ela e Maria Bethania interpretam Fernando Pessoa. Uma delícia.
Cleonice Berardinelli: veja fotos da professora e integrante da ABL
10 fotos
Acadêmica, que morreu nesta terça-feira (31), aos 106 anos, ocupava a cadeira nº 8 e era uma das maiores especialistas em literatura portuguesa
(Globo)