Jornalista encerra trajetória na emissora no final do mês, mas deixa pronto um ‘Globo Repórter’ especial para agosto do ano que vem
Ernesto Paglia, 63 anos, da TV Globo, sai da emissora após 43 anos e sete meses na empresa, no final de dezembro. Em comemoração aos 50 anos do Globo Repórter, ele deixa pronto um especial para agosto do ano que vem.
A saída do repórter foi confirmada por e-mail de Ali Kamel, diretor de jornalismo, e do próprio Paglia, ao qual o Estadão teve acesso nesta segunda-feira, 26.
Na mensagem, Kamel relembra um episódio no qual Paglia viveu em sua primeira cobertura de Copa do Mundo, na Itália. Enquanto entrevistava Enzo Bearzot, técnico da seleção italiana de futebol, cinegrafistas da emissora italiana Rai interromperam o repórter. “Somos italianos, fale conosco”, disseram ao treinador.
“Bearzot respondeu com um abraço e um beijo no jornalista da Globo. ‘È un bravo ragazzo’ (é um bom menino, em tradução livre)”, escreveu o diretor de jornalismo da Globo em e-mail.
Paglia respondeu à carta de Kamel e recapitulou sua passagem pela emissora. “Quando comecei na Globo, em maio de 1979, um ‘bom tempo de casa’ era atestado de competência. O certo é que esse longo período permitiu colecionar um repertório profissional que me enche de orgulho. Uma lista imensa de satisfações”, disse.
O jornalista se formou na USP e chegou à Globo em 1979, aos 20 anos recém completados. Começou no turno da madrugada, mas emplacou matérias no Jornal Nacional e ganhou um quadro no Bom Dia São Paulo.
Trabalhou como correspondente em Londres, na Inglaterra; conheceu o Brasil no quadro JN no Ar; cobriu guerras, como conflitos no Iraque e a invasão norte-americana no Afeganistão; visitou a Antártida duas vezes; cobriu a libertação de Nelson Mandela.
Nos últimos anos de Globo, Paglia esteve à frente do Fantástico produzindo reportagens nacionais e internacionais “em ritmo ainda mais frequente que o normal”.
“Sem sair de casa, fiz matérias que foram das explosões no porto de Beirute à entrevista com a ganhadora do prêmio Nobel da Paz de 2021, da pandemia da covid à guerra da Ucrânia. Os últimos anos no Fantástico também foram a minha segunda passagem pelo programa. Tenho muito orgulho de ter feito parte dessa equipe brilhante.”
Leia a carta de Ali Kamel, na íntegra:
Recém terminada a Copa do Catar, pensei em começar este texto relembrando um episódio ocorrido há quarenta anos em Madri.
A Itália tinha conquistado o tricampeonato, eliminando, no caminho, a reverenciada seleção brasileira de Zico, Sócrates, Júnior e Falcão, na chamada “Tragédia do Sarriá”. A Squadra Azzurra de Paolo Rossi começara a competição desacreditada, tão criticada que os jogadores decidiram fazer voto de silêncio, uma greve de entrevistas: eles se recusavam a falar com jornalistas italianos.
Um jovem repórter da TV Globo, fluente em italiano, tinha sido escalado para acompanhar desde os primeiros treinos o time comandado pelo técnico Enzo Bearzot. Foi ganhando confiança e conseguindo furos que encheram de inveja os colegas europeus. No dia 11 de julho, quando a Itália venceu a Alemanha e levantou a taça do tri, nosso repórter foi interrompido, de forma rude, durante uma entrevista com Bearzot. “Somos italianos, fale conosco”, disseram cinegrafistas da Rai, com arrogância. Bearzot respondeu com um abraço e um beijo no jornalista da Globo. “È un bravo ragazzo”.
Aquele jovem repórter era Ernesto Paglia, então cobrindo a primeira de oito Copas do Mundo. Mesmo sendo, em suas próprias palavras, “impermeável ao futebol”, Paglia sabe contar histórias, com texto refinado e generosidade. Esse talento o transformou num dos nomes essenciais do telejornalismo brasileiro.
Filho de mãe argentina e pai italiano, também jornalista, Paglia se formou na USP e chegou à Globo em 1979, por indicação de Carlos Monforte. O início foi no turno da madrugada, mas em pouco tempo, depois de emplacar reportagens no Jornal Nacional, Paglia ganhou um quadro no Bom Dia São Paulo. Batia à porta de personalidades bem cedo, montava o set e se preparava para entrevistas ao vivo, durante o café da manhã.
Destacou-se rapidamente. Participou de coberturas emblemáticas no início da década de 80: greves do ABC, visita do Papa João Paulo II, Diretas Já. Convidado para o Globo Repórter em 1983, Paglia levou prêmio internacional com um programa, roteirizado por Fernando Gabeira, sobre o cacique Mario Juruna, então o primeiro indígena eleito deputado federal.
Foi correspondente em Londres duas vezes. A primeira delas, de 1986 a 1989. Numa época de grandes transformações no cenário geopolítico, gravou com líderes mundiais, como Gorbachev e Margaret Thatcher. Acrescentou ao currículo o jornalismo de guerra, com reportagens no Iraque, durante o conflito sangrento contra o Irã. Cobriu a Segunda Intifada e a invasão americana ao Afeganistão. A prisão de Slobodan Milosevic e a libertação de Nelson Mandela. A Rio-92 e o avanço do desmatamento na Amazônia, em anos recentes. Nas últimas quatro décadas, o público brasileiro se acostumou a ser bem informado por Ernesto Paglia, sempre com inteligência e sensibilidade.
Viajou pelo Brasil de ponta a ponta no quadro JN no Ar, concebido por mim e exibido durante as eleições de 2010. Em busca do que de melhor e pior uma cidade podia oferecer, os destinos eram definidos por sorteio, uma cidade diferente a cada dia, o que impedia prefeitos e governadores de fazer maquiagens de última hora. E Paglia cruzava o país de jatinho com a equipe, sem saber como seria a próxima reportagem, o que iria encontrar. Às vezes, pegava uma turbulência e fazia piada cantando “Segura na mão de Deus”. A experiência no comando do quadro virou livro, lançado em 2011.
A carreira ofereceu a oportunidade de unir trabalho e paixões. Colecionador de carros antigos, teve o privilégio de dirigir em Interlagos com Ayrton Senna no banco do carona. Fascinado por mergulho, viveu inúmeras aventuras submarinas, mundo afora, e apresentou durante quatro anos o programa Globo Mar, concebido por Humberto Pereira e dirigido por Terezoca e Teresa Cavallheiro.
Paglia passou por todos os telejornais e fez parte do time que lançou a Globonews, em 1996. Teve uma segunda temporada no Globo Repórter. Foi um dos 16 repórteres escolhidos para falar dos 50 anos do jornalismo da Globo, na série do Jornal Nacional exibida em 2015.