Flavia Pedras Soares, que foi casada com ele durante 15 anos e hoje está com Zélia Duncan, fala sobre luto, saudade e herança
Jô Soares em foto de Bob Wolfenson Bob Wolfenson
A designer gráfica Flavia Pedras Soares foi casada com Jô Soares durante 15 anos. O apresentador, humorista, ator e escritor, que morreu no último dia 5 de agosto, citava “Flavinha” constantemente em seu programa de entrevistas na TV. Os dois estabeleceram uma relação de tanta cumplicidade que nem o fim do relacionamento, em 1998, foi capaz de abalar. Em uma entrevista, em 2018, Jô chegou a dizer que a separação “não deu certo”, já que eles permaneciam sempre juntos mesmo após o término.
Se a dupla seguiu a vida adiante foi sempre amparada pelo elo da bela amizade que construíram. Tanto que Flavia era quem estava ao lado do amigo em seus últimos momentos. Coube a ela dar a notícia de sua morte pelas redes sociais.
Três meses após a partida de Jô, completados no último sábado, Bitika, como Jô a chamava, fala emocionada ao GLOBO sobre Bolota, apelido carinhoso que ela lhe deu.
O GLOBO: Como definiria o significado da presença do Jô na sua vida?
Flávia: A presença do Jô era muito abrangente. Ele teve muitos papéis e significados na minha vida e o no meu desenvolvimento. Não sei definir um significado específico, que faça um resumo. Em cada momento — nos conhecemos quando eu tinha 20 anos e ele, 46 —, fomos muitas coisas um para o outro, mas todas envolviam grande qualidade de amor. Até nos momentos difíceis, com mágoas inevitáveis, nos tornamos pessoas melhores. Porque a gente gostava de gostar um do outro. A gente tinha coisas para trocar, é isso. Nunca nos desinteressamos do que um tinha para dar ao outro.
É bonito pensar na amizade de vocês, que permaneceu tão forte após a separação. Até o fim estiveram juntos, né? Como foram os últimos momentos dele?
Os últimos momentos dele foram um deslumbramento. O estado de afiada consciência e a inesperada completa perda do medo de morrer foram de uma beleza sem fim. Agora, por exemplo, estou aos prantos ao me lembrar das nossas últimas horas.
Jô Soares e Flavinha, sua ex-mulher — Foto: Arquivo pessoal
Do que mais sente falta?
Sinto falta de o telefone da casa tocar alta madrugada para ele dar notícia de um filme ou série a que assistia e dar boa noite. Ele era a única pessoa que ainda usava telefone fixo. Às vezes, até me irritava com isso, porque podia acordar outras pessoas da casa. Mas desde que ele morreu, nas duas ou três vezes que o telefone tocou tarde, eu, por 38 centésimos de segundo, pensei que pudesse ser ele. Quase morri. Mas o que eu mais sinto falta mesmo é de deitar do lado dele pra ver um filme, bem tarde, sempre, e segurar a sessão inteira a “mãozinha de poeta”, com aquela pele bem finiiiiinha… Era pura recarga de amor.
Como descreveria o processo de luto que está vivendo?
Difícil e diferente de todos os lutos que já vivi. Sou órfã, sei desse sofrimento. É doido. Tem momentos em que você acha que está tudo bem, que sua vida está seguindo. Daí, vem uma dor que te dá um tapa na cara e te joga na cama. É físico, sabe? Mas tenho a sorte de ter um amor, a Zélia (Duncan, cantora) que é uma companheira inacreditável (as duas estão juntas há seis anos e se casaram em 2021), dois irmãos que botam as coisas para andar, além de amigos maravilhosos, que me amam e que, junto com terapeuta e psiquiatra, formam uma rede muito elástica. Quando eu bato embaixo me jogam de volta para cima com o maior carinho. Mas eu sou mesmo é um escorpião cascudo que só me refaço no fundo da toca escura. E com tempo, muito tempo.
Depois que o Jô se foi, só vi pessoas compartilhando boas lembranças dele.
Que lindo você falar isso! Estou chapada com a quantidade de gente que tem aparecido para me contar alguma coisa boa, alguma ajuda, de todos os tipos, e que nem para mim ele tinha contado. O Jô, definitivamente, escolheu o bem. Porque é isso, né, as escolhas são diárias, e ver, desde que ele se foi, as escolhas comoventes que fez sem estardalhaço só confirmam que o sujeito era muito incrível. Vivo chorando por aí, de alegria por ter convivido tão de perto com ele, de raiva porque sinto saudade e também de agradecimento, por termos tido nossos caminhos cruzados tão definitivamente.
E as reverências não param… O que ele tinha de tão especial que provoca nas pessoas essa vontade de homenageá-lo?
O riso. A graça. E a vontade que dá de ver o Brasil melhor pelo qual ele lutava. O humor é resistência, e ele foi isso nos seus quase 60 anos de trabalho. Ele amava o palco, a casa dele era o teatro, mais que tudo. E ele amava o Brasil. Dizia que não seria ninguém fora daqui. Eu até nem concordo muito, mas não conta pra ele, tá?
Dizem que ele deixou toda a herança para os funcionários e para você, um gesto extremamente nobre. Foi isso mesmo? Como era a relação dele com os funcionários?
Sim, foi isso, e a resposta para sua pergunta é simples: o que estava há menos tempo em casa estava há mais de 20 anos.
Por que a família preferiu não revelar a causa da morte?
Por nenhuma razão específica. Ou para ensinar as pessoas a serem menos futriqueiras. As pessoas ficam velhas e morrem de causas naturais. Ele gostava da vida privada. Tendo sua morte sido natural e não trágica, felizmente, sendo ele um sujeito elegante na vida, desejamos que a morte dele fosse um pouco mais calma e reservada. Ele se mostrou tanto na vida, estava de bom tamanho. Quis caixão fechado e cremação, tudo rápido, e teve todo meu apoio.
Como o Jô via a sua relação com Zélia Duncan? Ela acabou se tornando uma grande amiga dele também, né?
Sim. Ele quis, ele escolheu ser amigo da Zélia. Já a admirava como artista e, rapidamente, entendeu que ela era uma mulher muito inteligente e engraçada. Daí, formou-se a amizade dos dois. E tem uma coisa geracional — eu e ela temos quase a mesma idade — e amávamos os programas de personagens, os bordões. Fazíamos ele repetir aquilo tudo e morríamos os três de rir. O Jô queria gostar de quem eu gostasse, mas a Zezé, apelido que ele deu para ela, era amor verdadeiro.
Qual é, na sua opinião, o principal legado deixado pelo Jô ao país?
O amor e humor. A crítica mordaz, inteligente e engraçada para que nos entendêssemos melhor e, assim, pudéssemos encontrar a vocação de sermos a gente incrível que ele achava que a gente era. Ainda falta muito, mas poucos fizeram tanto e tão dedicadamente por essa causa.
Como ele estava vendo a ascensão da extrema-direita no Brasil, o saudosismo da ditadura, o risco à democracia e de nos tornarmos um país autoritário?
Ele estava desesperado. Desiludido. Gostaria que ele tivesse podido ver a luzinha que agora se acende no fim do túnel. Teria ficado muito esperançoso. Queria que tivesse tido essa chance.
(Fonte: O globo)