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Simone Biles afasta traumas e volta às Olimpíadas por redenção: “Me sinto mais livre”

Simone Biles ginástica artística — Foto: Elsa/Getty Images

Ginasta mais condecorada da história, americana abre o peito e coloca “twisties” de Tóquio no passado para reescrever trajetória nos Jogos Olímpicos: “Posso contar minha própria história”


“Por anos eu fui celebrada pelas minhas vitórias. Agora sou celebrada por ser humana, ser vulnerável”. Simone Biles deixa os sentimentos aflorarem. O medo de se perder no ar durante piruetas e mortais ficou nas Olimpíadas de Tóquio, embora haja quem insista em lembrá-la. Tudo bem. Nada de raiva. Mais madura aos 27 anos, a americana afasta traumas os colocando sob os holofotes. A ginasta mais condecorada da história volta aos Jogos Olímpicos e busca em Paris uma redenção medida não por medalhas, mas por sorrisos libertadores de uma jornada reescrita.

– Antes eu tentava ocultar meus traumas. Agora aprendi a falar sobre isso e me libertar desse sentimento. Isso me ajudou muito e por isso eu tô fazendo o que eu tô fazendo (voltando às Olimpíadas). Não quero olhar pra trás daqui a 50 anos e pensar: “Ela era boa, mas era miseravelmente triste”. Algumas vezes eu posso ter pensado assim, mas olha agora: “Ela está se divertindo tanto fazendo o que faz”. É sobre aproveitar esse momento – disse a campeã olímpica, em entrevista à “NBC”.

Houve um tempo em que Simone Biles era vista como uma máquina de medalhas. Na estreia em Olimpíadas, na Rio 2016, foram quatro ouros e um bronze. Em Mundiais, o recorde de 30 medalhas (23 de ouro). Nos Jogos de Tóquio, mais uma prata e um bronze, mesmo com a cabeça atormentada pelos “twisties”, uma perda da consciência do equilíbrio aéreo. São 37 conquistas que fizeram a americana ultrapassar o belorrusso Vitaly Scherbo e assumir a liderança do ranking de maiores campeões da ginástica artística. Conquistas que lhe renderam o status de maior ginasta da história, the GOAT (greatest of all time). Até vestiu um collant simbólico da cabra (goat em inglês).

Simone Biles usa collant com imagem de cabra, símbolo de melhor de todos os tempos — Foto: Emilee Chinn/Getty Images

Simone Biles usa collant com imagem de cabra, símbolo de melhor de todos os tempos — Foto: Emilee Chinn/Getty Images

A ginasta continua de olho nas medalhas. Em Paris, é favorita a cinco dos seis pódios femininos da modalidade e pode chegar à melhor campanha da história em uma só edição dos Jogos – Vera Cáslavská, da antiga Tchecoslováquia, conquistou quatro ouros e duas pratas no México, em 1968. Para Simone, porém, a missão na arena Bercy é mais uma vez se reerguer. Já voou alto sobre o abandono da mãe biológica, sobre o preconceito por ser negra, sobre a dor de ser vítima dos abusos sexuais, sobre as críticas por ter mentalmente sucumbido em Tóquio, onde o título de maior estrela dos Jogos pesava em seus ombros.

– Sempre tentei me manter fiel a mim mesma. Sinto que a nova Biles é mais madura, um pouco mais velha. Serei eu sem dever nada pra ninguém. Eu me sinto muito mais livre, especialmente fazendo terapia. Então, fisicamente e mentalmente eu me sinto melhor. Entendi que essa é uma parte especial da minha rotina. Ter o controle disso é fundamental. Durante tanto tempo crescendo num esporte em que nós somos muito jovens e todos acabam contando as nossas histórias por nós. Agora que eu sou mais velha, mais madura, posso contar a minha própria história. E há uma beleza nisso.

Simone Biles Mundial de 2023 ginástica artística — Foto: Tim Clayton/Corbis via Getty Images

Simone Biles Mundial de 2023 ginástica artística — Foto: Tim Clayton/Corbis via Getty Images

Um ciclo de redenção: de Tóquio a Paris

Depois da Rio 2016, Simone Biles tirou um ano sabático e pôde colher os frutos das conquistas olímpicas. Depois dos Jogos de Tóquio, a americana também se afastou do ginásio, mas viveu um cenário bem diferente. Foi pesado lidar com a avalanche de críticas por ter desistido de quatro finais individuais, com um perigoso bloqueio psicológico durante as acrobacias. Precisava cuidar da cabeça.

– Foi meio deprimente até que comecei a terapia e procurei ajuda. Eu me senti um fracasso. Embora eu estivesse dando forças a tantas pessoas e falando sobre saúde mental, toda vez que eu falava sobre minha experiência em Tóquio, porque obviamente não foi como eu havia planejado, doía um pouco.

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Há vida além da ginástica – o casamento
Simone Biles deu visibilidade às questões psicológicas no esporte. Virou um símbolo de cuidados com a saúde mental. Não intencionalmente. Só queria se reencontrar. Aos poucos foi voltando aos trilhos. Em julho de 2022, a ginasta se tornou a mais jovem americana a receber a medalha presidencial da liberdade, a maior honraria civil dos Estados Unidos.

Simone Biles medalha presidencial EUA Joe Biden — Foto: REUTERS/Kevin Lamarque

Simone Biles medalha presidencial EUA Joe Biden — Foto: REUTERS/Kevin Lamarque

A vida amorosa impulsionou a reconstrução de Simone. O namoro com o Jonathan Owens virou noivado em fevereiro de 2022. Os dois compraram e reformaram uma casa. Em março de 2023, a ginasta se casou com o jogador de futebol americano do Chicago Bears. Foi uma cerimônia discreta, apenas para familiares e amigos mais próximos.

– Eu tinha 19 anos quando ganhei minhas primeiras Olimpíadas e pensei: “Como vou superar isso?” Meu casamento foi melhor. Foi a melhor sensação de todas.

Simone Biles vestida de noiva ao lado do marido Jonathan Owens — Foto: Reprodução

Simone Biles vestida de noiva ao lado do marido Jonathan Owens — Foto: Reprodução

O retorno em grande estilo e o Yurchenko Double Pike
Simone já tinha voltado ao ginásio três meses antes de seu casamento, embora àquela altura tudo fosse segredo para evitar especulações. Não tinha certeza se abraçaria de vez o projeto de retornar ao alto rendimento e de voltar às Olimpíadas, mesmo que o discurso estrategicamente desviasse de Paris até poucos meses atrás. Um ciclo olímpico mais leve, não menos desafiador.

Em agosto do ano passado, a ginasta voltou às competições e apresentou o salto Yurchenko Double Pike (Yurchenko com duplo mortal carpado), o mais difícil atualmente da ginástica artística feminina. Por causa dos “twisties”, ela não pôde homologá-lo em Tóquio, mas o batismo do voo até então inédito veio em 2023: o Biles II. Foi o símbolo de um retorno em grande estilo coroado no Mundial da Antuérpia com quatro ouros e uma prata.

– Acho que com tudo que passei, quero ultrapassar os limites, quero ver até onde posso ir. Quero ver do que ainda sou capaz para que, quando me afastar deste esporte, possa realmente estar feliz com minha carreira e dizer que dei tudo de mim.

carrossel especial olimpico simone biles — Foto: infoesporte

carrossel especial olimpico simone biles — Foto: infoesporte

Traumas do passado

O abandono da mãe biológica
Desde criança a trajetória de Simone Biles foi marcada por traumas. A família de Simone está sempre na arquibancada para apoiá-la. Mesmo em um ginásio cheio, é fácil identificar os gritos da caçula Adria: “Vai, Simone!” Os pais Ron e Nellie também acompanharam de perto as principais conquistas da ginasta. Uma família unida e feliz. Algo que a americana nem sempre teve.

Simone tinha apenas três anos quando o serviço social americano a retirou junto com seus três irmãos da mãe Shanon, incapaz de cuidar das crianças por abusar das drogas. O avô Ron acolheu as duas caçulas e uma de suas irmãs os mais velhos. Nellie, segunda esposa de Ron, tomou as meninas como suas, e elas fazem questão de chamar os dois de pais – o casal tem outros dois filhos.

Ron, Adria e Simone Biles — Foto: Reprodução/Instagram

Ron, Adria e Simone Biles — Foto: Reprodução/Instagram

O racismo
Em um esporte historicamente dominado por pessoas brancas, Simone teve de lidar com o preconceito por ser negra. O racismo ficou mais escancarado quando despontou em seu primeiro Mundial, com quatro medalhas em 2013. Depois da competição, a ginasta italiana Carlotta Ferlito falou que pintaria a pele para ser negra na competição seguinte e assim ter chance de ser campeã – no ano anterior, Gabby havia se tornado a primeira negra a conquistar o título olímpico do individual geral. O racismo também a atacou nas críticas após desistir das finais dos Jogos de Tóquio.

No início de sua carreira, Simone evitava dar visibilidade ao racismo na ginástica e afirmava sempre ter tido o mesmo tratamento de uma branca no ginásio. Mais madura, passou a ser referência na luta antirracista. Apoiou vítimas, como uma pequena ginasta irlandesa no ano passado. Exaltou conquistas de ginastas negras, como o inédito pódio 100% negro no Mundial de 2023 ao lado de Rebeca Andrade e Shilese Jones. Tornou-se espelho.

– Como uma mulher preta, nós temos que ser as melhores, porque, mesmo quando você quebra recordes ou algo do tipo, as pessoas tentam menosprezar – disse Simone.

Simone Biles, da ginástica artística — Foto: John Shearer/WireImage

Simone Biles, da ginástica artística — Foto: John Shearer/WireImage

Os abusos sexuais
Em janeiro de 2018, Simone Biles revelou que tinha sido uma das centenas de sobreviventes dos abusos sexuais cometidos por Larry Nassar, ex-médico da seleção americana de ginástica condenado a 360 anos de prisão por assédios e pornografia infantil. A ginasta disse na época que viveu períodos de depressão e demorou muito para entender as violências a que havia sido submetida.

No dia 15 de setembro de 2021, Simone prestou um testemunho sobre os abusos sofridos. Também fez duras críticas à USA Gymnastics (Federação de Ginástica dos EUA), ao Comitê Olímpico e Paralímpico dos Estados Unidos (USOPC) e ao FBI. Segundo ela, as autoridades tinham conhecimento da situação muito antes do assédio se tornar público: “o sistema permitiu e o perpetrou”. A ginasta assumiu o posto de porta-voz das sobreviventes, inclusive vestindo em 2018 um collant em solidariedade às vítimas de abusos.

– Se você olhar para tudo que eu passei nos últimos sete anos, eu nunca deveria ter feito parte de outro time olímpico. Eu deveria ter desistido muito antes de Tóquio, quando Larry Nassar estava na mídia por dois anos. Foi muito. Mas eu não ia deixá-lo tirar de mim algo pelo qual eu trabalhei desde os meus seis anos de idade. Eu não iria deixá-lo tirar de mim toda aquela alegria.

Simone Biles dá depoimento no Senado dos EUA — Foto: Graeme Jennings-Pool/Getty Images

Simone Biles dá depoimento no Senado dos EUA — Foto: Graeme Jennings-Pool/Getty Images

(GE)