Superprodução traz ao cinema 48 músicas remixadas de David Bowie e performances inéditas

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Desenvolvido ao longo de quase oito anos, a cinebiografia ‘Moonage daydream’ conta ainda com imagens jamais vistas do arquivo pessoal


Cena do longa 'Moonage daydream' — Foto: Divulgação

Cena do longa ‘Moonage daydream’ — Foto: Divulgação

Três semanas após David Bowie morrer, em 2016, Brett Morgen ligou para o administrador do legado do pop star com uma proposta ambiciosa: recriar, a partir de imagens e sons produzidos pelo camaleão do rock, o gênero da cinebiografia. A resposta, para sorte dos fãs, foi positiva. Bill Zysblat lembrava com carinho do projeto nunca realizado, por conta da saúde já debilitada de Bowie, em que Morgen o filmaria em 50 palcos diferentes. E apostou que o amigo abriria seu sorriso característico ao ver o público, no cinema, experimentando um show jamais visto dele.

Sete anos e oito meses depois, e com um ataque cardíaco no meio, Morgen apresenta, a partir de hoje nos cinemas, seu “Moonage daydream” (título de um dos hits de “The rise and fall of Ziggy Stardust”, de 1972). O filme conta com 48 músicas remixadas em Dolby Atmos por Paul Massey (Oscar de melhor som por “Bohemian Rhapsody”, sobre o Queen), dezenas de performances inéditas dos anos 1970 a 2010, imagens jamais vistas do arquivo pessoal e narração, após minucioso trabalho de edição, do próprio Bowie.

Se não chega a reinventar a roda, Morgen realizou o sonho de milhares de adoradores do autor de “Starman”.

— Foram dois anos só pra conseguir ver tudo o que havia no baú do Bowie. Não dava pra fazer algo careta, um bla-bla-blá . O filme está mais próximo de um parque de diversões da Disney do que de uma investigação jornalística sobre o cidadão David Robert Jones — diz o diretor de “Cobain: Montage of Heck”, sobre o líder do Nirvana.

Da citação inicial de Nietzsche às imagens filmadas e nunca antes reveladas de “Blackstar” (o álbum derradeiro de Bowie), o filme de 2h20 é uma experiência rock-filosófica mais bem absorvida em Imax e com qualidade sonora (bem) superior à da maioria dos festivais de rock. Ou, como diz Morgen, “pense menos em informação e mais em energia pura, como um Pink Floyd ultralisérgico”.

Porém, ainda que de forma nada convencional, “Moonage daydream” percorre, e em alto e bom som, a trajetória singular de um dos definidores da arte pop do século XX.

Na tela, o jovem Bowie reflete sobre o distanciamento da mãe e a proximidade do meio-irmão, que sofria de esquizofrenia, e seu consequente medo da loucura. Profético, escancara a ferida das fronteiras de gênero e vê coerência em se reconhecer alienígena em um mundo caótico e fragmentado. Beatnik fora de época, cultiva o nomadismo (“Nunca comprei uma casa, pra quê?”) e se reinventa na Londres natal, na Los Angeles que detestava, na Berlim do Muro, no espelho de Manhattan.

Trata das armadilhas da fama, de se perceber um rock’n roll suicide, com direito a cover arrepiante de “Love me do”, dos Beatles. Da faceta movie star e da acusação de ter se vendido ao mainstream com propaganda da Pepsi e tudo. Mas também da pausa para respirar no casamento com a supermodelo somali Iman e do desejo de trabalhar menos e produzir mais amor — sua tradução definitiva de liberdade.

Não por acaso, o produtor Tony Visconti disse ao New York Times que “David ficaria impressionado com o filme”. Um dos mais importantes parceiros de Bowie, ele intimou Morgen a baixar em seu estúdio para uma audição a dois imediatamente antes de o diretor iniciar as filmagens de “Moonage daydream”.

— Ouvimos juntos “Cygnet comittee”. Ao fim, Bowie, com 19 anos, repete, “I want to live/ I want to live/I want to live”, em versão que uso no filme. Ali está o mesmo amor pela vida que ele teria no fim e cantaria em “Blackstar”. O filme é um círculo, termino onde começo, começo onde termino. Como ele — diz Morgen.

Aos 47 anos, um ano após abrir os arquivos de Bowie, Morgen, hoje com 53, sofreu um ataque cardíaco. Ficou em coma por uma semana e, ao retornar para a mulher e os três filhos, entendeu que “Moonage daydream”, mais do que um filme, era uma metáfora para virar a vida do workaholic do avesso. Que era preciso se reinventar no processo, tal qual fazia tão bem o sujeito do outro lado da tela.

— Editei com toda calma, sozinho, durante a pandemia. No dia em que o filme foi apresentado pela primeira vez, em uma sessão especial no Festival de Cannes, recebi um bilhete do Bill (Zysblat) — conta. — Ele me agradecia por ter passado 15% de minha vida na sala de edição construindo o documentário. Não tinha nem me tocado! Pois não trocaria por nada os domingos passados sozinho ao lado de Bowie. Aliás, recomendo a todos com mente aberta: fume, beba, inale David Bowie.

Um dos segredos do filme, que tem 96% de aprovação no agregador de críticas Rotten Tomatoes, é a qualidade do som mixado por Paul Massey. Indicado sete vezes ao Oscar antes de levar a estatueta pela cinebio de Freddie Mercury e do Queen, ele se notabilizou por registrar com fidelidade o som de bandas como Yes, Supertramp e Police em turnês dos dois lados do Oceano Atlântico.

— Fui buscar lá as ferramentas para fazer o que o Brett me pedia: “Mais alto! Mais alto!” — conta. — Queríamos que o público saísse do cinema como se tivesse ido a um show do Bowie, e hoje. Que, mesmo se você cometesse o crime de fechar os olhos, o som já fosse um filme por si só.

“Moonage daydream” não existiria se Bowie não tivesse guardado pérolas como a versão de “Heroes” em que suas modulações vocais alteram o ritmo da música. Ou os registros de fãs alucinados nos bastidores de “Ziggy” e, uma década depois, de “Let’s dance”.

— Parece contraditório alguém tão iconoclasta guardar tudo. Em vez de tentar decifrar o mistério, abracei o paradoxo. É o David conversando consigo mesmo, como quando diz que “só ao perceber que havia vivido mais dias do que os que estavam à minha frente, comecei de fato a viver” — diz Morgen.

(Fonte:O Globo)